Reproduzo na íntegra o post de Ivan Nunes em sua praia.
Ivan Nunes conseguiu escrever um texto lúcido sobre algo que há muito penso. Sobre a hipocrisia que cerca a Igreja e o Estado, ou melhor, a nossa sociedade (tanto em Portugal quanto aqui) principalmente no que se refere ao controle de natalidade.
Pelo aborto decente
Leio, por recomendação de um amigo, a «política à portuguesa» de José António Saraiva no Expresso. É divertido. Há muitos anos que não experimentava.
Gostava de citar, mas não tenho o texto à mão. Há uma coisa que me impressiona muito nos argumentos dos partidários da penalização legal do aborto - em todos, menos os que aspiram à abstinência e acreditam nela. Os outros têm uma fé absoluta no preservativo e na pílula. Podem já não acreditar no dogma da infalibilidade do Papa, mas ainda acreditam na infalibilidade dos métodos anticoncepcionais. Acham, enfim, que quem engravida sem querer tem má-vontade, está de má-fé.
Ora, eu não nego que muito se possa fazer no campo da educação sexual; não nego que muito se possa avançar na difusão dos meios anticoncepcionais a que a Igreja Católica se opõe. Mas convém não subestimar o espermatozóide, o engenho da pequena criatura, o seu desejo por vezes impetuoso de derrubar barreiras, e a ânsia correspondente do óvulo por ser fecundado. Há espermatozóides e óvulos que acreditam mais no seu destino comum do que as criaturas que respectivamente os produziram. Nem espermatozóide nem óvulo têm cérebro, e isso, como é sabido, torna o amor mais provável.
A gravidez acidental é um facto da vida. Acontece, e mais vezes do que se supõe, mesmo a cidadãos íntegros e conscienciosos, infalivelmente racionais e prudentes até à cópula. Mesmo a esses, acontece. Ora, se nós acreditamos - como quase todos nós acreditamos - que o facto de dois indivíduos decidirem ter uma relação sexual não implica necessariamente que assumam a responsabilidade de ter em conjunto um filho - porque não se amam, porque não têm um relacionamento estável, porque mal se conhecem, porque não têm dinheiro, porque são uns miúdos, porque nunca voltam a ver-se, porque não - temos de admitir que o aborto é uma última instância de possibilidade. E que, nessa última instância, que infelizmente ocorre mais vezes do que se supõe, o aborto deve ser seguro, limpo, praticado em higiene, sem censura pública, sem falta de dinheiro e sem clandestinização.
A posição contrária só me parece admissível àqueles que acreditem - para si e para os outros - na abstinência.
Levarei a sério - e estou a falar muito a sério - os argumentos dos que se opõem por princípio ao aborto no dia em que eles deixarem de usar a lei para penalizar quem o pratica. Levarei a sério os anti-abortistas quando eles se colocarem estritamente no campo da persuasão moral, quando não forem cúmplices da clandestinização, quando não chamarem para o seu lado a polícia.